domingo, 18 de janeiro de 2015

Sobre o Fenômeno dos Empregos Insignificantes - 'Por que a utopia prometida por Keynes nunca se materializou e ainda continua sendo avidamente aguardada, desde os anos 60?'





Publicado originalmente na Strike! Magazine[1]

por David Graeber[2]

 Em 1930, John Maynard Keynes profetizou que, no final do século, a tecnologia teria avançado tanto que países como Grã-Bretanha[3] e Estados Unidos conseguiriam ter 15 horas de trabalho por semana. Existem muitas razões para crer que ele estava certo. Em termos tecnológicos, temos capacidade para isso. No entanto, tal não aconteceu. Ao contrário, a tecnologia foi empacotada, se tanto, de modo a descobrir maneiras de todos nós trabalharmos mais. 

Para alcançar esse objetivo, trabalhos tiveram que ser criados para ser, efetivamente, inúteis. Grande quantidade de pessoas, na Europa e na América do Norte, em particular, passa toda sua vida de trabalho realizando tarefas que secretamente acredita não ser necessárias. O dano moral e espiritual que vem dessa situação é profundo. É uma cicatriz de lado a lado na nossa alma coletiva. Porém, quase ninguém fala sobre isso.

Por que a utopia prometida por Keynes nunca se materializou e ainda continua sendo avidamente aguardada desde os anos 60? O pensamento padrão atual é de que ele não imaginou o crescimento massivo no consumo. Dada a escolha entre menos horas e mais brinquedos e prazeres, nós coletivamente escolhemos a segunda opção. Isso apresenta uma boa fábula de moralidade, mas um momento de reflexão mostra que pode não ser verdade. Sim, nós testemunhamos a criação de uma variedade infinita de novos trabalhos e indústrias desde os anos 20, mas bem poucos têm a ver com a produção e distribuição de sushi, iPhones e sapatos da moda.

Então o que exatamente são esses novos trabalhos? Um recente relatório que comparou o emprego nos EUA entre 1910 e 2000 nos dá uma clara imagem (e noto que é praticamente o que se vê refletido no Reino Unido). Ao longo do último século, o número de trabalhadores empregados como domésticos [Nota: trabalhadores manuais] na indústria e no campo colapsou drasticamente. Ao mesmo tempo, triplicou o de profissionais, administradores, secretários, vendedores e funcionários de empresas de serviços, passando de um quarto para três quartos do total de empregos. Em outras palavras, os trabalhos produtivos, como previsto, foram em grande parte automatizados (mesmo se você contar com todos os trabalhadores da indústria no mundo, incluindo as massas que fazem trabalho pesado na Índia e na China, eles já não representam uma porcentagem tão alta da população mundial, como costumava ser).

Mas em vez de permitir a redução maciça do horário de trabalho para dar liberdade à população mundial de perseguir seus próprios objetivos, prazeres, projetos e ideias, acabou inflacionando não apenas os setores de serviços e os administrativos, mas também a criação de indústrias inteiras, como a de serviços financeiros ou telemarketing, ou a expansão sem precedentes de setores como direito empresarial, administração acadêmica e de saúde, recursos humanos e relações públicas. E esses números nem sequer refletem todas essas pessoas cujo trabalho é prestar apoio administrativo, técnico ou de segurança para essas indústrias, sem mencionar toda a gama de setores secundários (tratadores de cães, entregadores de pizza na madrugada etc.), que existem apenas porque todo mundo está gastando muito do seu tempo trabalhando em todos os outros setores.

Esses trabalhos são o que proponho chamar de insignificantes.

É como se alguém começasse a criar empregos inúteis apenas para que nos mantivéssemos trabalhando. E precisamente aqui reside o mistério. No capitalismo, é exatamente isso o que não deveria acontecer. Claro, nos antigos e ineficientes estados socialistas como a União Soviética, onde o emprego era considerado tanto um direito quanto um dever sagrado, o sistema criava tantos postos quanto o número de trabalhadores (é por isso que uma loja de departamento soviética precisava de três funcionários para vender um pedaço de carne). Mas, claro, esse é o tipo de problema que a concorrência de mercado deve corrigir. Pelo menos de acordo com a teoria econômica, a última coisa que uma empresa com fins lucrativos vai fazer é gastar dinheiro com trabalhadores que realmente não precisa empregar. Ainda assim, de alguma maneira, isso acontece.

Enquanto as corporações fazem cortes cruéis de pessoal, as demissões e facões recaem invariavelmente na classe de pessoas que realmente estão fazendo, movendo, corrigindo e mantendo as coisas; por meio de alguma alquimia que não se consegue explicar, em última análise o número de assalariados dentro de um escritório parece se expandir e cada vez mais e mais empregados se encontram, não muito diferente dos trabalhadores soviéticos, trabalhando na verdade 15 horas, como Keynes profetizou, já que o restante do seu tempo eles gastam organizando ou participando de seminários motivacionais, atualizando o Facebook ou baixando séries de TV.

A razão para isso claramente não é econômica: é moral e política. A classe dominante percebeu que uma população feliz e produtiva com tempo livre em suas mãos é um perigo mortal (pense no que começou a acontecer quando isso se aproximou dos anos 60). Por outro lado, a sensação de que o trabalho é um valor moral em si e que qualquer um que reclama de se submeter a algum tipo de intensa disciplina trabalhista na maior parte das horas em que fica acordado não merece nada é algo extraordinariamente conveniente para essa classe.

Certa vez, ao contemplar o aparente crescimento interminável das responsabilidades administrativas nos departamentos acadêmicos britânicos, encontrei uma possível visão do inferno. Inferno é uma coleção de indivíduos que estão perdendo a maior parte do tempo trabalhando em tarefas de que não gostam e nas quais não são especialmente bons. Dizem que foram contratados por ser excelentes marceneiros, e então descobrem que precisam desperdiçar grande parte do tempo fritando peixe. Nem a tarefa precisa realmente ser feita — pelo menos o número de peixes que precisam fritar é bem limitado. Mas de algum jeito, todos se tornam tão obcecados com a resignação ao pensar que alguns de seus colegas de trabalho devem estar gastando mais tempo construindo armários e não fazendo sua parte na responsabilidade de fritar peixes, que, então, em pouco tempo há pilhas intermináveis e inúteis de peixe frito mal feito se acumulando no trabalho, e isso é tudo o que alguém realmente faz.

Acho que atualmente essa é uma descrição bastante precisa das dinâmicas morais da nossa própria economia.

*

Agora percebo que um argumento desses vai encontrar objeções imediatas: “Quem é você para dizer quais são os empregos realmente ‘necessários’? O que é necessidade, afinal? Você é um professor de antropologia, qual a ‘necessidade’ disso?” (Sem dúvida, muitos leitores de tabloide considerariam a existência do meu emprego como a própria definição de desperdício de dinheiro público.) E, em certo sentido, isso obviamente é verdade. Não deve haver uma medida objetiva de valor social.

Eu não me atreveria a dizer a alguém que está convencido de contribuir significativamente para o mundo que, na realidade, ele não está. Mas o que dizer sobre as pessoas que estão se convencendo de que seus empregos não têm sentido? Algum tempo atrás retomei o contato com um amigo de escola que não via desde os 12 anos. Espantei-me ao descobrir que nesse período ele primeiro virou poeta depois líder de uma banda indie de rock. Eu tinha ouvido algumas das músicas dele no rádio sem me dar conta de que o cantor era alguém que eu conhecia. Era óbvio que ele era brilhante, inovador e sem dúvida seu trabalho iluminava e melhorava a vida das pessoas em todo o mundo. Entretanto, depois de alguns álbuns sem sucesso, ele perdeu seu contrato e, atormentado por dívidas e com uma filha recém-nascida, acabou por, como dizia, “tomar a decisão padrão de tanta gente sem rumo: a faculdade de direito”. Agora ele é um advogado corporativo de uma proeminente empresa de Nova York. Ele foi o primeiro a admitir que seu trabalho era totalmente sem sentido, não contribui em nada para o mundo e, na sua opinião, não deveria nem existir.

Há muitas perguntas que alguém poderia fazer aqui, começando com: o que se pode dizer sobre nossa sociedade, que parece criar uma demanda extremamente limitada para talentosos músicos-poetas mas uma demanda infinita para especialista em direito empresarial? (Resposta: se 1% da população controla grande parte da riqueza disponível, o que chamamos de “mercado” reflete o que eles pensam ser útil ou importante, não o que pensa qualquer outra pessoa.) Mas, ainda mais, isso mostra que a maioria das pessoas nesses empregos estão, em última análise, cientes disso. Na verdade, não tenho certeza se alguma vez conheci um advogado empresarial que não achasse seu trabalho insignificante. O mesmo vale para quase todos os novos mercados descritos acima. Há toda uma classe de profissionais assalariados — encontre-os em alguma festa e diga que você faz algum trabalho interessante (como antropologia, por exemplo) que evitarão discutir até mesmo a linha de trabalho deles. Dê-lhes alguns drinques e eles vão se lançar em discursos inflamados sobre quão inútil e estúpido o trabalho deles é.

Há uma profunda violência psicológica aqui. Como se pode pelo menos começar a falar sobre dignidade no trabalho quando secretamente se percebe que o trabalho de alguém nem deveria existir? Como não criar um sentimento de profunda raiva e resignação? Entretanto o gênio peculiar da nossa sociedade fez que seus governantes conseguissem engendrar um meio, como no exemplo dos fritadores de peixe, de garantir que essa raiva seja dirigida precisamente contra aqueles que, na verdade, fazem algum trabalho significativo. Por exemplo, em nossa sociedade, parece haver uma regra geral pela qual quanto mais obviamente o trabalho de uma pessoa beneficia alguém, menor é a chance de ela ser paga por isso. De novo, é difícil encontrar uma medida objetiva, mas um jeito fácil de ter uma noção é perguntar: o que aconteceria se uma classe inteira de trabalhadores simplesmente desaparecesse? Diga o que quiser sobre enfermeiros, catadores de lixo ou mecânicos: é óbvio que, se eles desaparecessem numa nuvem de fumaça, os resultados seriam imediatos e catastróficos. Um mundo sem o trabalho de professores ou estivadores logo estaria em apuros — até mesmo um mundo sem escritores de ficção científica ou músicos seria um lugar menor. Mas não está totalmente claro como a humanidade sofreria se todos os CEOs de fundos de investimento privado, lobistas, pesquisadores de relações públicas, atendentes de telemarketing, oficiais de justiça ou consultores legais igualmente sumissem. (Muitos suspeitam que haveria uma melhora.) No entanto, fora um punhado de exceções bem alardeadas (médicos), a regra continua muito válida.

Ainda mais perversa parece ser a percepção de que é dessa maneira que as coisas deveriam ser. Esse é um dos segredos fortes do populismo de direita. Você pode vê-lo quando os tabloides lançam açoites de ressentimento contra os metroviários por paralisarem Londres durante disputas trabalhistas: o simples fato de os metroviários conseguirem paralisar Londres mostra o quanto seu trabalho é realmente necessário, mas isso parece ser exatamente o que incomoda as pessoas. Isso é ainda mais claro nos EUA, onde republicanos têm tido sucesso ao direcionar esse ressentimento contra professores ou trabalhadores da indústria automotiva por causa de salários e benefícios supostamente altos (mas, de modo muito significativo, não o fazem contra os administradores de escolas e gestores da indústria, que realmente causam os problemas). É como se lhes dissessem: “Mas você precisa ensinar as crianças! Ou fazer carros! Você precisa ter empregos de verdade! E ainda por cima tem coragem de esperar por aposentadoria e plano de saúde?”

Se alguém tivesse concebido um sistema de trabalho perfeitamente ajustado para manter o poder do mercado financeiro, seria difícil saber como poderia ter feito melhor. Os trabalhadores que realmente produzem são implacavelmente pressionados e explorados. O restante está dividido entre um estrato aterrorizado e universalmente insultado de desempregados e outro maior, representado basicamente pelos que são pagos para não fazer nada em cargos destinados a simpatizar com as perspectivas e sensibilidades da classe dirigente (gerentes, administradores etc.) — e, em particular, seus avatares financeiros — e, ao mesmo tempo, para difundir o sentimento latente contra qualquer um cujo trabalho tenha valor social claro e indiscutível. É evidente que esse sistema não foi conscientemente concebido. Ele surgiu de quase um século de tentativas e erros. E é a única explicação para o fato de, apesar de nossas capacidades tecnológicas, não termos uma jornada de trabalho de 3 a 4 horas por dia.

Revisado em 23/12/2014. Pequenos ajustes e correções.

Notas do tradutor

1. A expressão “bullshit jobs”, no título original, pode ser traduzida como “empregos de merda” — Sobre o Fenômeno dos Empregos de Merda, por exemplo — , porém, no sentido deste texto, “bullshit” também equivale a “insignificante”, “besteira”, “tolice”.

Traduzido e reproduzido com autorização dos proprietários do conteúdo.

2. David Graeber é professor de antropologia na London School of Economics.



3. A Grã-Bretanha não é um país, e sim uma ilha na qual estão contidas quatro nações: Escócia, Inglaterra, Irlanda e País de Gales. Mantivemos a palavra usada pelo autor.

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